DANIEL GALERA (7B) – O ‘REALISMO ENGANOSO’ DE GALERA

mãos que se desenham (1948), de escher

(Escher, Mãos que se Desenham, 1948)

como vejo o suposto ‘realismo’ de Daniel Galera em Meia-Noite e Vinte: os detalhes das mãos são muito realistas, assim como as descrições de Galera; mas o conjunto da gravura não pode ser realista, assim como no romance o excesso de ligações entre as partes revela o artificialismo do texto (e esta característica tomada, é claro, como a melhor qualidade do livro, aquela que o distingue do “realismo rasteiro” (BERNARDO, O Livro da Metaficção, 2010, p. 44) dos escritores de best-sellers).

ou, como diz Saramago no Evangelho segundo Jesus Cristo: “No geral dos casos deste evangelho tem havido coincidências avonde [= em abundância]” (p. 182).

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a expressão “realismo enganoso” é tirada de John Gledson – autor de The Deceptive Realism of Machado de Assis (1984), traduzido como Machado de Assis: Impostura e Realismo (1984) – embora não com o mesmo sentido.

Gledson sustenta que se chame Machado de realista, mas ressalvando que esse realismo é enganoso, “ou seja, está oculto do leitor, de maneira que se torna necessário ler nas entrelinhas para entender o romance” (GLEDSON, p.23).

Gustavo Bernardo (O Problema do Realismo de Machado de Assis. RJ: Rocco, 2011) ironiza a atribuição do rótulo de ‘realista’ a Machado de Assis, mesmo que qualificado de ‘enganoso’: “não incomoda a John Gledson que um livro com o título de Memórias Póstumas de Brás Cubas seja considerado realista, como se fizesse parte da realidade corrente que um morto redigisse da tumba suas próprias memórias – a narrativa omite se o caixão do personagem dispunha de papel, pena e luz de vela, mas estes decerto são detalhes irrelevantes.”

não é exatamente nesse mesmo sentido de Gledson que estamos considerando a expressão ‘realismo enganoso’, mas a relação que vejo entre Galera e Machado de Assis (obviamente que guardadas as proporções) é que assim como este é tido comumente como ‘o início do realismo no Brasil’, embora o narrador de MPBC seja um defunto, também Galera é tachado com o rótulo de ‘realista’, apesar das “coincidências avonde” atentarem contra a verossimilhança, pelo menos em Meia-Noite e Vinte. Mesmo assim, à primeira vista, em uma leitura apressada, percebe-se somente o impressionante realismo das mãos (e quem sabe se algum dia ainda não o dirão ‘regionalista’, enterrando de vez todo o belo trabalho com a linguagem arquitetado no romance, para se contentar com as ocorrências de ‘tus’ e ‘bahs’).

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deve ter ficado claro já que o conceito de ‘realismo’ com que estamos trabalhando é mesmo aquele da “teoria simplista da referência” [sic] do pensamento francês do séc. XX, criticada por Compagnon em O Demônio da Teoria (2003, p. 114): “Pretensa imitação da realidade, tendendo a ocultar o objeto imitante em proveito do objeto imitado” (p. 106).

portanto, nossa hipótese é que, ao investir nas diversas coincidências que ligam trechos do enredo uns aos outros, Meia-Noite e Vinte vai além do realismo, pois realça o objeto imitante (o próprio texto) em detrimento da verossimilhança, a qual tornaria mais fácil a crença do leitor na realidade dos objetos representados.

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ou será que esses artifícios que estou celebrando são apenas técnicas automáticas ensinadas nos cursos de “como escrever um livro de ficção” que Galera frequentou, sendo, na verdade, o aspecto mais prosaico de todos (‘não deixe nenhum fio solto no enredo! tudo tem que estar ligado a alguma coisa!’)? e Galera seria somente um aluno aplicado dessas oficinas, tendo aprendido até a fórmula do equilíbrio nas referências à cultura pop (e manter-se sempre no nicho ‘midcult’), para não resultar exagerado como um Máquina de Pinball, excessivo nas citações mas muito mais visceral e pungente que o mundo perfeitamente administrado de Meia-Noite e Vinte.

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